“Provisoriamente não
cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.”
(Carlos Drummond de Andrade)
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.”
(Carlos Drummond de Andrade)
Venho acompanhando com muito
interesse o debate sobre a questão manicomial e as internações compulsórias de
dependentes químicos e portadores de sofrimento mental.
Sinto-me no dever de abordar
sobre esse tema, tendo em vista que convivo e convivi com essa situação em
família durante muitos anos. Várias são as posições de pessoas que, de alguma
forma, leigas ou não, com experiências no tema ou não, expõem opiniões que nada
ajudam na elucidação do drama de quem faz uso das substâncias que causam
dependência química e também do desencadeamento de crises psicóticas,
arrastando um grave quadro de transtornos emocionais, físicos e psíquicos e das
relações sociais de forma devastadoras.
Em geral, os familiares não
conseguem entender a gravidade da situação e não suportam conviver com essa
doença compulsiva e os transtornos mentais que a acompanha. De fato, é muito
difícil aceitar que esse doente se lance diuturnamente na sofreguidão do vício
e é perfeitamente compreensível o pavor da família que não sabe como e o que
fazer. O comportamento choca, a promiscuidade é flagrante, o defeito de caráter
é patente. Mas, é bom que se lembre: são
seres humanos que estão perdidos em si
mesmos, angustiados e ávidos para mudar o rumo. Só que não conseguem. A loucura
causada por essas relações ameaçam a todos, e lidar com essa diferença é um desafio
constante que adoece a todos os envolvidos.
Tenho na família um portador
de esquizofrenia, desencadeada por uso de substâncias químicas ilícitas. Depois
de algumas internações compulsórias, que duraram em média 30 dias cada uma,
todas ocorridas antes da sanção da Lei Antimanicomial, em nenhuma delas houve
resultado satisfatório, ou seja, o paciente não alterou em nada sua compulsão e
ainda piorou seu quadro de esquizofrenia. A “orientação” do hospital
psiquiátrico era a de manter o paciente confinado e sedado, “zumbizado” e em
estado de morbidez constante. Nas visitas, mal conseguia se expressar, com
olhar vago e os músculos retesados pela forte carga de Aldol e Akineton. Naqueles pesados dias de visitas nenhuma informação
sobre a evolução do quadro, nenhum contato dos médicos, nenhuma atividade
laboral. Um ambiente frio, triste, impessoal e uniforme, todos sob efeito das
drogas medicamentosas, como um bando de mortos-vivos andando em círculos,
braços tesos, pernas robóticas e babando. Um quadro desolador.
Um aspecto importante é que
a família, perdida e sem saber o que fazer, usa da ameaça de internação, não
como uma proposta de tratamento e recuperação, mas como uma forma de punição,
formando um jogo terrivelmente maléfico. Por outro lado, o doente, pressionado e em
crise profunda, acaba por se tornar violento e a fuga é sua primeira opção. Na rua,
ele experimenta a ausência dos limites que em casa tem de cumprir, busca a
companhia de seus pares no gueto, nas
esquinas, nos viadutos e aí encontra o
“amparo” dos iguais.
O Estado, omisso em suas
responsabilidades, tem feito um
movimento contrário à recuperação dessas pessoas. A onda de internar forçosamente os dependentes químicos é uma tragédia sem
precedentes. As “clínicas” que estão pipocando por todo lado, a maioria de
caráter religioso, evangélicas, não
reúnem, nem de longe, o ambiente adequado para um tratamento eficiente. Elas
são fundadas apenas e tão somente para arrecadar recursos públicos e não mantêm
qualquer condição de tratar nem recuperar ninguém, são depósitos de gente
trancafiada sob rígida vigilância, submetida a castigos físicos e psicológicos
e obrigada a manter subserviência religiosa com a congregação mantenedora. Não
passa por avalição médica periódica, não tem privacidade, a comida é de má
qualidade e as pessoas sem qualquer conhecimento técnico ou preparo pra lidar com
a causa. É um modelo excludente e prejudicial ao ser humano em sua integridade.
Nesse modelo privatista,
baseado no lucro, com o jogo da vida humana, a família fica excluída e até
proibida do contato tão necessário. Afeto é um item extremamente importante em
qualquer situação, principalmente nas de risco que envolve o tênue fio entre vida e morte.
Muito nos trás indignação a pouca preocupação do Estado ao repassar a
essas instituições recursos públicos, sem a responsabilidade com os resultados.
Essa é uma demonstração cabal de que o
Estado quer empurrar o problema, e pior: agravá-lo ao criar um círculo vicioso
de internação, fugas constantes de
pacientes, alta sem condições de reinserção social e a volta pra rua ou pra
família, causando violências e aprofundamento das crises. Essa situação pode
ser também descrita nos casos de internação de pacientes portadores de
sofrimento mental de todas as matizes.
O modelo bom é aquele que
considera o sujeito como cidadão, portador de todos os direitos e deveres,
porém sem obriga-lo a nada, já que o tratamento precisa ser considerado como
uma opção de recuperação e não como uma
punição pelo seu “mal comportamento”. O atendimento por equipes multidisciplinares é a melhor das
condições por considerar o paciente como um ser complexo e com necessidades
emocionais, afetivas, físicas e outras várias. As clínicas de rua e os hospitais-dia, mais o
aparato familiar reúnem condições importantes para o sucesso do tratamento. As
internações só seriam necessárias em casos
extremos de surtos e por um período curto. As psicoterapias de grupos
de mútua ajuda também são bem-vindas, já que proporcionam trocas e suporte de uns para com os outros no dia a dia. O atendimento participativo de
outros profissionais da equipe cria vínculos
importantes e dá segurança ao paciente. As oficias laborais estimulam a
criatividade, ajudam a extravasar tensões e cria ambiente amistoso entre os pacientes
do hospital dia. Os familiares podem
acompanhar também com seus grupos de mútua ajuda para reaprender a lidar com a
nova fase da vida de seu ente querido com o objetivo de reinseri-lo aos poucos.
As recaídas são previstas e é preciso muita perseverança.
È aí que se insere a
diferença entre o modelo excludente da psiquiatria tradicional e das
falsas clínicas de recuperação e o novo modelo proposto pela proposta
antimanicomial. A reinserção ao convívio familiar e na comunidade é a chave
para um bom resultado.
Os hospitais e clínicas psiquiátricas
tradicionais só servem para punir, excluir e
piorar as condições desses portadores de sofrimento mental e dependentes
químicos, além de não ajudar a família a lidar com a doença. Já temos
informações suficientes pra entender que o louco e o dependente químico também
expressam as relações doentes de uma sociedade que recusa as diferenças, os joga no limbo e primam pela lucratividade
com a doença.
O modelo manicomial
sequestra oficialmente o sujeito, a
família violenta o doente, o médico tem o
poder absoluto sobre ele e nada mais lhe resta a não ser perambular sem rumo.
Ao defender o fim desse
modelo maléfico, estou querendo dizer
que não há saída se não olharmos o outro com os olhos do coração. Não há cura
se não houver amor nas relações e o fim da desqualificação do outro, é preciso dar aos
sujeitos a oportunidade de exercer o
direito sagrado da cidadania!
*Graduada em psicologia pós-graduada em
Direitos Humanos
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