quinta-feira, 31 de julho de 2014

COM OS OLHOS DO CORAÇÃO


COM OS  OLHOS DO CORAÇÃO

“Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.”
(Carlos Drummond de Andrade)


                                                                                                                        
Neide Maria Pacheco*


Venho acompanhando com muito interesse o debate sobre a questão manicomial e as internações compulsórias de dependentes químicos e portadores de sofrimento mental.
Sinto-me no dever de abordar sobre esse tema, tendo em vista que convivo e convivi com essa situação em família durante muitos anos. Várias são as posições de pessoas que, de alguma forma, leigas ou não, com experiências no tema ou não, expõem opiniões que nada ajudam na elucidação do drama de quem faz uso das substâncias que causam dependência química e também do desencadeamento de crises psicóticas, arrastando um grave quadro de transtornos emocionais, físicos e psíquicos e das relações sociais de forma devastadoras.
Em geral, os familiares não conseguem entender a gravidade da situação e não suportam conviver com essa doença compulsiva e os transtornos mentais que a acompanha. De fato, é muito difícil aceitar que esse doente se lance diuturnamente na sofreguidão do vício e é perfeitamente compreensível o pavor da família que não sabe como e o que fazer. O comportamento choca, a promiscuidade é flagrante, o defeito de caráter é patente.  Mas, é bom que se lembre: são seres humanos que estão perdidos  em si mesmos, angustiados e ávidos para mudar o rumo. Só que não conseguem. A loucura causada por essas relações ameaçam a todos,  e lidar com essa diferença é um desafio constante que adoece a todos os envolvidos.
Tenho na família um portador de esquizofrenia, desencadeada por uso de substâncias químicas ilícitas. Depois de algumas internações compulsórias, que duraram em média 30 dias cada uma, todas ocorridas antes da sanção da Lei Antimanicomial, em nenhuma delas houve resultado satisfatório, ou seja, o paciente não alterou em nada sua compulsão e ainda piorou seu quadro de esquizofrenia. A “orientação” do hospital psiquiátrico era a de manter o paciente confinado e sedado, “zumbizado” e em estado de morbidez constante. Nas visitas, mal conseguia se expressar, com olhar vago e os músculos retesados pela forte carga de Aldol e Akineton.  Naqueles  pesados dias de visitas nenhuma informação sobre a evolução do quadro, nenhum contato dos médicos, nenhuma atividade laboral. Um ambiente frio, triste, impessoal e uniforme, todos sob efeito das drogas medicamentosas, como um bando de mortos-vivos andando em círculos, braços tesos, pernas robóticas e babando. Um quadro desolador.
Um aspecto importante é que a família, perdida e sem saber o que fazer, usa da ameaça de internação, não como uma proposta de tratamento e recuperação, mas como uma forma de punição, formando um jogo terrivelmente maléfico.  Por outro lado, o doente, pressionado e em crise profunda, acaba por se tornar violento e a fuga é sua primeira opção. Na rua, ele experimenta a ausência dos limites que em casa tem de cumprir, busca a companhia de seus pares  no gueto, nas esquinas, nos viadutos  e aí encontra o “amparo” dos iguais.
O Estado, omisso em suas responsabilidades,  tem feito um movimento contrário à recuperação dessas pessoas. A onda de  internar forçosamente  os dependentes químicos é uma tragédia sem precedentes. As “clínicas” que estão pipocando por todo lado, a maioria de caráter religioso,  evangélicas, não reúnem, nem de longe, o ambiente adequado para um tratamento eficiente. Elas são fundadas apenas e tão somente para arrecadar recursos públicos e não mantêm qualquer condição de tratar nem recuperar ninguém, são depósitos de gente trancafiada sob rígida vigilância, submetida a castigos físicos e psicológicos e obrigada a manter subserviência religiosa com a congregação mantenedora. Não passa por avalição médica periódica, não tem privacidade, a comida é de má qualidade e as  pessoas sem qualquer conhecimento técnico ou preparo pra lidar com a causa. É um modelo excludente e prejudicial ao ser humano em sua integridade.
Nesse modelo privatista, baseado no lucro, com o jogo da vida humana, a família fica excluída e até proibida do contato tão necessário. Afeto é um item extremamente importante em qualquer situação, principalmente nas de risco que envolve o tênue fio entre  vida e  morte.  Muito nos trás indignação a pouca preocupação do Estado ao repassar a essas instituições recursos públicos, sem a responsabilidade com os resultados. Essa é uma demonstração cabal  de que o Estado quer empurrar o problema, e pior: agravá-lo ao criar um círculo vicioso de internação,  fugas constantes de pacientes, alta sem condições de reinserção social e a volta pra rua ou pra família, causando violências e aprofundamento das crises. Essa situação pode ser também descrita nos casos de internação de pacientes portadores de sofrimento mental de todas as matizes.
O modelo bom é aquele que considera o sujeito como cidadão, portador de todos os direitos e deveres, porém sem obriga-lo a nada, já que o tratamento precisa ser considerado como uma opção de recuperação  e não como uma punição pelo seu “mal comportamento”. O atendimento por  equipes multidisciplinares é a melhor das condições por considerar o paciente como um ser complexo e com necessidades emocionais,  afetivas,  físicas e outras várias.  As clínicas de rua e os hospitais-dia, mais o aparato familiar reúnem condições importantes para o sucesso do tratamento. As internações só seriam necessárias em casos  extremos de surtos e por um período curto. As psicoterapias de grupos de  mútua ajuda também são bem-vindas,  já que proporcionam  trocas e suporte  de uns para com os outros  no dia a dia. O atendimento participativo de outros profissionais da equipe cria vínculos  importantes e dá segurança ao paciente. As oficias laborais estimulam a criatividade, ajudam a extravasar tensões e cria ambiente amistoso entre os pacientes do hospital dia.  Os familiares podem acompanhar também com seus grupos de mútua ajuda para reaprender a lidar com a nova fase da vida de seu ente querido com o objetivo de reinseri-lo aos poucos. As recaídas são previstas e é preciso muita perseverança.
È aí que se insere a diferença entre o  modelo  excludente da psiquiatria tradicional e das falsas clínicas de recuperação e o novo modelo proposto pela proposta antimanicomial. A reinserção ao convívio familiar e na comunidade é a chave para um bom resultado.
Os hospitais e clínicas psiquiátricas tradicionais só servem para punir, excluir e  piorar as condições desses portadores de sofrimento mental e dependentes químicos, além de não ajudar a família a lidar com a doença. Já temos informações suficientes pra entender que o louco e o dependente químico também expressam as relações doentes de uma sociedade  que recusa as diferenças,  os joga no limbo e primam pela lucratividade com a doença.
O modelo manicomial sequestra oficialmente  o sujeito, a família violenta o doente, o médico  tem o poder absoluto sobre ele e nada mais lhe resta a não ser perambular sem rumo.
Ao defender o fim desse modelo maléfico,  estou querendo dizer que não há saída se não olharmos o outro com os olhos do coração. Não há cura se não houver amor nas relações e o fim da  desqualificação do outro, é preciso dar aos sujeitos  a oportunidade de exercer o direito sagrado da cidadania!

*Graduada em psicologia pós-graduada em Direitos Humanos


Mais informações, acesse o  link: