sexta-feira, 27 de maio de 2016

A cultura da violência sexista

 Em 1935, um jornal mexicano noticiou que um homem bêbado jogou a namorada numa cama e a apunhalou cerca de vinte vezes. Quando questionado pela polícia sobre o crime, o assassino respondeu que apenas foram umas “facadinhas de nada”. Sensibilizada pelo ocorrido, Frida Kalo pintou a cena.


A cultura da violência sexista


Você já foi chamada de puta?
Eu já fui!
Mas, as putas não merecem respeito? 
Sim, merecem!
Você já foi abusada na sua relação afetiva?
Eu já fui!
Você já foi assediada por chefe? 
Eu já fui.
Você já foi abusada em ônibus coletivo?
Eu já fui!

Mas, a maioria das intimidações e violências contra as mulheres são praticadas dentro de quatro paredes, no seio do lar. Dito isto, vamos demarcar o campo. As violências são praticadas por companheiros, por  homens que são de nossa mais  estreita convivência. São aquelas violências que humilham, tentam te desqualificar e menosprezar.  São praticadas por chefes, maridos, irmãos, amigos, companheiros. Pode ser velada ou explícita. Elas acontecem mais do que se possa imaginar.

A agressão é invisível, menosprezada. Onde deveria haver afeto, há humilhação. Aí é que reside a complexidade. Como ela é invisível, fica difícil  a denúncia, o reconhecimento e a punição. E, por ser velada, ela vai se avolumando e se configurando, paulatinamente. Quando a vítima percebe, muitas vezes, já é tarde. Ela já sofreu todo tipo de desconstrução do seu eu e da sua identidade. No trabalho, em casa, na escola, nas ruas, o tempo todo. A mulher é atacada,  assediada. Não há um espaço sequer aonde ela possa transitar sem ser vilipendiada na sua identidade feminina. O mundo patriarcal, cada vez mais, está a postos para usurpar e medir com uma régua curta a nossa condição. Não se trata de uma questão feminista, mas de uma luta quanto à desigualdade de gênero. É uma desigualdade sexista, onde o patriarcado impõe suas regras a qualquer custo.

Ao longo da história da humanidade, a mulher sempre foi desqualificada, Desde Maria Madalena, a suposta puta que Jesus (homem) salvou do apedrejamento, passando pela Idade Média, com a Inquisição, até nossos dias, somos queimadas. 77% das mulheres que relatam viver situações de violência sofrem agressões semanais ou diárias. Em mais de 80% dos casos a violência foi cometida por homens com quem a vítima tem algum vínculo:  marido, companheiro, irmão, chefes.

Quanto aos graves casos de estupros, no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil e que, destes casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia. Os registros do Sinan demonstram que 89% das vítimas são do sexo feminino e possuem, em geral, baixa escolaridade. Do total, 70% são crianças e adolescentes. As formas de controle ou cerceamento atingem 19% das mulheres com menor escolaridade, contra 27% das que possuem diploma superior. Já a violência psíquico-verbal é igual para todas, com 21%, e a sexual aponta uma diferença irrisória: 11% para quem tem ensino fundamental e 8% das diplomadas. A violência não tem classe social. Tanto atinge quem é pobre ou quem tem nível social elevado.

Uma triste constatação é que nas delegacias e ao solicitar Boletins de Ocorrências, as atitudes são de descaso e há uma tendência de culpar a vítima, que são as mulheres. Os homens que acolhem as denúncias, intimamente, acabam fazendo julgamento moral e assumem um papel vergonhoso de acobertar o denunciado. Não é raro mulheres se queixarem de abusos no atendimento dessas ocorrências por parte de agentes públicos. Essa deve ser uma das causas que levam muitas mulheres a desistir de fazer a denúncia. Há exemplos clássicos de que nada acontece com o agressor. Recentemente o médico famoso da elite paulista, Roger Abdelmassih, acusado de molestar sexualmente cerca de 40 clientes,  foi agraciado com um "habeas corpus" emitido pelo Ministro Gilmar Mendes, o que facilitou sua fuga. A impunidade é uma situação que intimida as vítimas. A Polícia, a Justiça, são machistas e operadas na maioria por homens e, sendo assim, julgam por seu espelho. Caso clássico é a absolvição do delegado que abusou da neta de 16 anos e, mesmo ela tendo narrado com detalhes o estupro, o juiz livrou o canalha (Vide link abaixo). Num país onde a Justiça está falida, não podemos esperar que haja punição aos criminosos. Dentro em breve, teremos de nos organizar em fileiras de autodefesa, como fizeram as indianas do Sari Rosa, que combatem com as próprias mãos os homens flagrados no abuso.

Denunciar é necessário, mas o receio com o que vai acontecer depois, com o parceiro e com a família, gera angústia e incertezas. Mas, é preciso romper o silêncio, quando a tentativa de diálogo é fracassada. O melhor seria manter o diálogo permanente, mas quando esse se esgota, não há mais o que fazer, então é preciso reunir coragem e romper com o silêncio, antes que seja tarde. 

Neide - 28 de Maio

http://brasileiros.com.br/2016/05/juiz-absolve-delegado-acusado-de-estuprar-neta/ http://professoraalice.jusbrasil.com.br/artigos/121814480/violencia-contra-a-mulher-atinge-todas-as-classes-sociais
http://www.bbc.com/portuguese/brasil-36401054

  http://www.compromissoeatitude.org.br/dados-e-estatisticas-sobre-violencia-contra-as-mulheres/




sexta-feira, 18 de dezembro de 2015


Manicômios, nunca mais!


“Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.”
(Carlos Drummond de Andrade)


                                                                                                                        
Neide M. Pacheco*

Venho acompanhando com muita preocupação o debate sobre a questão manicomial e a posse do novo Coordenador de Saúde Mental do MS, o psiquiatra Valencius Wurch Duarte Filho, historicamente defensor do modelo manicomial. Foi diretor de um dos maiores centros de internação psiquiátrica do país, num manicômio que foi alvo de muitas denúncias de violações de Direitos Humanos. Felizmente, seu hospital foi fechado em 2012, após um longo processo na Justiça. Portanto, não admitimos retrocessos numa luta que teve seu embrião em 1974 com a vinda ao Brasil de Franco Baságlia. O Ministro afirma que a escolha foi "neutra". Ora, senhor Ministro, na vida não há neutralidade em nada! Qualquer escolha que se faz, se faz dentro de uma concepção filosófica, política e ideológica! O nosso Movimento de Luta Antimanicomial é histórico e forte, não admite concessões dessa natureza. Nossa luta foi e é árdua pra manter um sistema mais humanizado de tratamento aos portadores de sofrimento mental por meio dos modelos descentralizados, mantidos nas comunidades, próximos das famílias. A luta hoje é para ampliar  a rede de acolhimento e fornecer as condições pro cidadão ter uma formação e se emancipar economicamente. Não admitimos qualquer mudança que faça retroceder essa luta histórica.

Tenho na família um portador de esquizofrenia, desencadeada na adolescência. Depois de algumas internações compulsórias em hospitais manicomiais, que duraram em média 30 dias cada uma, todas ocorridas antes da sanção da Lei Antimanicomial, em nenhuma delas houve resultado satisfatório, ou seja, o paciente  piorou seu quadro de esquizofrenia. A “orientação” do hospital psiquiátrico era a de manter o paciente confinado e sedado, “zumbizado” e em estado de morbidez constante. Nas visitas, mal conseguia se expressar, com olhar vago e os músculos retesados pela forte carga de Aldol e Akineton.  Naqueles  pesados dias de visitas nenhuma informação sobre a evolução do quadro, nenhum contato dos médicos, nenhuma atividade laboral.  Sequer conseguia expressar alguma emoção e contato conosco no momento das visitas.. Um ambiente frio, triste, impessoal e uniforme, todos sob efeito das drogas medicamentosas, como um bando de mortos-vivos andando em círculos, braços tesos, pernas robóticas e babando. Um quadro desolador. 

 O atendimento por  equipes multidisciplinares, proporcionado pela Política de Saúde Mental do SUS, é a melhor das condições por considerar o paciente como um ser complexo e com necessidades emocionais,  afetivas,  físicas e outras várias. É aí que se insere a diferença entre o  modelo  excludente da psiquiatria tradicional, manicomial,  e o novo modelo da proposta antimanicomial. A reinserção ao convívio familiar e na comunidade é a chave para um bom resultado. Os hospitais e clínicas psiquiátricas tradicionais só serviram para punir, excluir e  piorar as condições desses portadores de sofrimento mental e dependentes químicos, além de não ajudar a família a lidar com a doença. Já temos informações suficientes pra entender que o louco e o dependente químico também expressam as relações doentes de uma sociedade  que recusa as diferenças,  os joga no limbo e primam pela lucratividade com a doença. O modelo manicomial sequestra oficialmente  o sujeito, a família violenta o doente, o médico  tem o poder absoluto sobre ele e nada mais lhe resta a não ser perambular sem rumo.

Ao defender o fim completo desse modelo maléfico,  estou querendo dizer que não há saída se não olharmos o outro com os olhos do coração. Não há cura se não houver amor nas relações e o fim da  desqualificação do outro, é preciso dar aos sujeitos  a oportunidade de exercer o direito sagrado da cidadania fora dos muros dos manicômios!

Queremos que a Presidenta Dilma reconsidere a indicação do Dr.  Valencius à frente da Coordenação da Saúde Mental do MS. Ele não nos representa!

*Graduada em psicologia pós-graduada em Direitos Humanos



domingo, 14 de dezembro de 2014

Que história é essa de não "merece" ser estuprada?

                                            Foto do Google: autor desconhecido


Já faz um bom tempo que  tenho ficado incomodada com a frase amplamente divulgada e usada nas redes sociais que diz "Não mereço ser estuprada". Não gosto, definitivamente, dela!  Buscando entender com profundidade  a etimologia da palavra MERECER, pesquisei.  No Latim, a palavra merere quer dizer "ser digno de, ganhar, ter lucro, fazer jus, tornar-se merecedor". Daí  também surgiu em português a palavra merenda (coisas que são merecidas, ganhos; todo aluno estudioso faz jus à merenda). Resumindo, de "merere"  também deriva  "merecimento" (aquilo que alguém tem  para ser digno de merecimento).

Bem entendido o termo, então passo ao próximo raciocínio. Por ser uma frase inapropriada, não a uso de forma alguma e deveria ser banida pelas ativistas feministas e  demais apoiadores das causas e campanhas contra o estupro. Então, há quem mereça ser estuprado (fazer jus, ser digno)?  Alguém merece ser alvo de algum crime, seja ele qual for?  Estamos  atravessando uma onda de fascismo, de ideias conservadoras e  violência gratuita que nos faz aderir a qualquer frase de efeito, sem pensar no que ela realmente significa. E são nesses significados que devemos nos ater pra não conferir legitimidade a essas frases feitas e que  se alastram como vírus.

Estupro, violência sexual são crimes hediondos e é preciso que sejamos mais firmes nessa questão. O deputado fascista que repetiu essa frase que rola há algum tempo na internet, ainda emendou depois dizendo que a sua colega é feia, por essa razão ele não a estupraria! Ora, nem as feias nem as bonitas e nem ninguém pode ser alvo de um crime ou de ameaça. Não se trata de uma questão de "merecimento" ser ou não ser estuprada! Fascistas e  demais machistas misóginos acham certo pensar que mulheres possam ser merecedoras desse "prêmio",  de serem abusadas e atacadas por eles?

De  acordo com o 8º Anuário Nacional de Segurança Pública, aproximadamente 150 mil mulheres foram estupradas no Brasil em 2013 ( estima-se que apenas 35% dos casos são registrados). Os estupros domésticos não são denunciados, muitas vezes. Mesmo sob os lençóis, não dá ao marido  o direito de achar que a mulher é  obrigada a manter relações  sexuais à força só porque ela é "sua" mulher! Na maioria dos casos o agressor está na família e na vizinhança.

Por todas as razões, chamo a todos e todas a refletir  sobre essa frase estranha e errada. Ao invés de dizer "Eu não mereço ser estuprada", devemos dizer: Nenhuma mulher pode ser estuprada! Nenhum gay ou transsexual  podem ser estuprados!  Estupro é crime e não questão de merecimento! Se há uma palavra de ordem que pode  e deve ser usada é : "Bolsonaro, você não merece ser deputado"!  Resta saber se o Congresso, com numerosos parlamentares reacionários,  vai topar essa parada!

Pela cassação  imediata!

Neide Pacheco - BH












segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Psicóloga sofre perseguição de fundamentalistas na Câmara Federal

Psicóloga sofre ataques e perseguição  dos deputados federais Bolsonaro e Marco Feliciano após palestra sobre sexualidade em evento na Câmara Federal.
A Revista Forum  fez uma matéria e entrevista com a profissional, que reproduzimos a seguir, para colaborar com a divulgação do caso e mostrar a todos e todas o nível desqualificado de alguns parlamentares de ultra direita que dizem representar a sociedade. A esses todo o nosso desprezo e repúdio pelo completo desrespeito a profissionais sérios e que estão a serviço da ciência.

O fundamentalismo religioso está causando um retrocesso gigantesco nas relações sociais e não respeita a  laicidade do Estado.  Quando se mistura religião com política a coisa fica muita séria e se coloca a serviço do obscurantismo.
Leia a seguir:

VAGABUNDA. PEDÓFILA. DEPRAVADA.

Vagabunda. Pedófila. Depravada.
Estes foram alguns dos adjetivos que a pesquisadora Tatiana Lionço ganhou depois de ser vítima de campanhas difamatórias apoiadas por Bolsonaro e Feliciano
Por Marcelo Hailer
Tatiana Lionço, que teve a sua vida privada invadia por fanático religiosos
Tatiana Lionço, que teve a sua vida privada invadia por fanático religiosos
Em 2012 foi realizado no Congresso Nacional o IX Seminário LGBT, cujo tema era “Diversidade se aprende na infância”. A pesquisadora Tatiana Lionço (UniCeub) foi uma das palestrantes e discorreu a respeito do despertar do desejo e da curiosidade que pré-adolescentes sentem em relação ao próprio corpo e dos amigos.
O que Tatiana não esperava era que a sua fala se tornasse alvo de um vídeo (Deus Salve as Crianças) que conta com a apresentação do deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ), mas que, ao invés de colocar a apresentação na íntegra, editou a fala de Lionço para dar a entender de que a pesquisadora é a favor da pedofilia.
O Conselho de Ética e a Corregedoria foram acionados para que analisassem se não havia quebra de decoro parlamentar, visto que a produção do vídeo saiu de dentro do gabinete do deputado. Porém, nada aconteceu e as acusações foram arquivadas. Se com Bolsonaro nada houve, o mesmo não se pode dizer de Tatiana, que teve a sua vida privada invadida por ataques de fanáticos que enviavam mensagens onde a classificavam como “puta, vagabunda e depravada”.
Uma campanha promovida por apoiadores de Bolsonaro foi realizada na rede, memes diziam que Tatiana era uma “prostituta”, por ter formação em Psicologia foi comparada à psicóloga Marisa Lobo (que é a favor das terapias de conversão da orientação sexual). No caso, de um lado colocaram Lionço como a favor da depravação e, do outro, Lobo como favorável à vida.
Na conversa que você lê a seguir, Tatiana conta tudo o que passou, como teve a sua vida invadida e difamada. Também revela que transformou isso em potência para fazer política. Felizmente, ela contou com apoio do seu local de trabalho e de alguns amigos de luta. Porém, diz que, do poder público, não recebeu nenhuma ajuda. E o que mais a revolta é a sensação de banalização de toda essa história e o fato de os parlamentares envolvidos nestas campanhas de difamação seguirem impunes.
Fórum – Quais medidas legais você tomou em relação aos vídeos que a difamaram?
Tatiana Lionço - No ano passado eu e o ex-presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Humberto Verona, protocolamos denúncia por quebra de decoro na Câmara com base nesse vídeo em que o Feliciano anuncia ironicamente a sua renúncia, difama autoridades políticas e atribui satanização a movimentos sociais. Mas o presidente da Câmara dos Deputados respondeu que Feliciano estava amparado pela liberdade religiosa. Também já assinei outras duas representações contra o Feliciano e o Bolsonaro, que foram entregues à Procuradoria Geral da República (PGR), mas que, até agora, não deram em nada. Diziam respeito às distorções da minha fala no IX Seminário LGBT sobre pedofilia, sobretudo. Aliás, entrei com uma representação na Polícia Federal contra o Bolsonaro e os blogues que se mostram aliados do parlamentar, que está em aberto.
Fórum – Sobre o vídeo do Bolsonaro, também não deu em nada? 
Lionço - Nada, e foi a primeira representação apresentada, ainda em 2012, articulada pelo Jean Wyllys (PSOL-RJ). Fui uma das pessoas que assinou, pois foi uma ação coletiva. Sobre aquela [representação] que apresentei individualmente o ofício ao presidente da Câmara, recebi uma resposta “sabonete”. Inclusive, tenho também uma resposta do Bolsonaro, que disse que eu “incito o homossexualismo” e que era sua responsabilidade alertar a sociedade.
Fórum – Como reagiu diante dessa campanha?
Lionço - Entrei de cabeça, linha de frente mesmo dos atos “Fora Feliciano”, movida por toda essa indignação. Mas a coisa continuou, apareço de novo no vídeo do infeliz, por exemplo. O próprio Bolsonaro voltou a mencionar a discussão sobre sexualidade infantil em entrevista recente, relativa ao pleito de presidir a CDHM. E o Feliciano usou bastante o alerta sobre sexualidade na infância ano passado, em entrevistas, no entanto, sem citar meu nome e dos outros. Mas eles recuperam isso toda hora.
Fórum – Isso teve ressonância na sua vida pessoal e profissional? 
Lionço - Na vida pessoal, muita, na vida profissional, nem tanto, não fui demitida (risos). E a partir daí passei a palestrar sobre o fundamentalismo religioso. Sou uma das articuladoras do movimento estratégico pelo Estado laico. Tudo isso é consequência, um jeito de tirar proveito dessas violações.
Na vida pessoal, sofri muito preconceito. Escutei de muitas pessoas que o ativismo não valia a pena, que eu me expunha demais, que deveria tomar cuidado com a minha imagem. Recebia quase que diariamente mensagens de pessoas que nem conheço me chamando de puta, vagabunda e depravada. Isso não faz bem, é ilusório acreditar que não atinge nossa sanidade mental. Depois, tive alguns ataques de descontrole emocional na Câmara, como quando fui impedida de entrar três vezes seguidas. O Jean teve que mediar minha entrada uma vez.
Entrei numa de tentar neutralizar toda essa energia negativa, cuidado espiritual mesmo. Fiz novas alianças e fiquei muito só por quase um ano, escrevendo e-mails, rastreando meu nome pelo Google, lendo absurdos a meu respeito. Pessoas chegaram a afirmar que eu consinto que um adolescente enfie o dedo na vagina de menina de 5 anos. Veja bem, na época que li isso minha filha estava com 5 anos. Foi algo muito violento, pessoalmente falando. E meus filhos sabem que isso aconteceu, aproveitei para alertá-los que existem pessoas que usam o nome de Deus em vão, como dito nas escrituras que não se deve proceder.
Meme utilizado em campanha contra Tatiana Lionço
Meme utilizado em campanha contra Tatiana Lionço
Fórum – Além de você, outras pessoas também foram alvo dessa campanha difamatória.
Lionço - O Cris (Cristiano Lucas) foi alvo de um vídeo do Bolsonaro, “Professor de criança: sou viado e dou o cu”. Ele distorceu o “sou viado com orgulho” para “sou viado e dou o cu”, e sugeriu explicitamente que o Cris era pedófilo. É muito baixaria, um ataque moral diante do qual é muito difícil reagir. Você se torna pedófilo na internet e depois tem que lutar para provar que foi violado em uma acusação grave como essa.
Fórum – Como manter a integridade num momento como esse?
Lionço - Manter a sanidade mental é difícil, passei por pânico, noites a fio sem dormir. Nessas horas, o julgamento vem de todos os lados: dos que acreditam que você é um horror mesmo, dos que querem te dar lição de moral… Tem gente que fala: meu pronunciamento teria sido diferente, só não se lembram que não eram elas que estavam na mesa da Câmara. É nesse nível a falta de apoio.
Fórum – E sobre a sua participação na mesa do IX Seminário LGBT. O tema foi pré-acordado?
Lionço-  O convite feito a mim, da Câmara, era para discursar sobre sexualidade na infância e adolescência e sua relação com a homofobia. Sequer foi um tema que tirei da minha cabeça ou um recorte que deliberadamente escolhi. Foi debate encomendado. E é um tema possível de ser debatido na perspectiva da Psicologia e das Ciências Sociais. Por isso, a primeira resposta que tive foi uma nota de desagravo do CFP, lida em audiência no Senado sobre ética profissional e diversidade sexual, presidida pela Marta Suplicy (PT-SP) na época.
Fórum – E os apoios das redes de ativistas?
Lionço - Sim, tiveram cartas de apoio. A Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH), grupos de pesquisa como o GESE da Universidade Federal do Rio Grande. Tive apoio também da Liga Humanista Secular do Brasil. A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis (ABGLT), que acreditei ser a primeira instância a se posicionar por ter já passado por coisa semelhante, demorou muito a atender meu pedido de ajuda. O que quero dizer é que o apoio e a falta dele vem de pessoas e instituições imprevisíveis e toda essa violação serviu para que eu redesenhasse minha rede de apoio. O Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD-LGBT), vinculado à Presidência da República, emitiu nota também, apesar da omissão da Coordenação LGBT da SDH a respeito. Não medi esforços e fiz também denúncia na ouvidoria da SDH e me receberam para uma conversa e arquivamento de provas.
Fórum – E os ataques contra você pararam?
Lionço - Nada, tudo alimenta a ira deles, eles atacaram o CFP e tem cartaz difamatório me comparando com a Marisa Lobo. No caso, eu, a depravada, ela, a santa. Depois começaram a mirar em novos alvos, por isso meu nome não circula mais tanto, mas já estou preparada emocionalmente para ser xingada depois dessa entrevista. Já entendi que essa é uma luta que realmente vale a pena.
De um lado a depravada e do outro a santa
Meme criado por apoiadores psicóloga Marisa Lobo, que defende as terapias de conversão de orientação sexual
Fórum – Você sente que não deram importância para o seu caso e dos outros que foram e são vitimas de campanhas promovidas pelos fundamentalistas com apoio parlamentar? 
Lionço - Sinto que banalizaram, no geral, como problema pessoal dos envolvidos. Nunca tivemos resposta; a audiência na OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] nacional foi a gente que conseguiu. Todas as reações foram nossas, o poder público nunca fez nada, foi um abandono absoluto.
Fórum – Você falou sobre “tortura moral”…
Lionço - Chamo isso de estupro moral, tortura moral, uma nova modalidade de tortura que não era possível na época da ditadura militar por que a internet não existia. É uma nova forma de perseguição política, de criminalização de movimentos sociais, é assim que penso a respeito do que fazem. O que fizeram comigo e com o Cris foi uma tentativa de acabar com nossas carreiras, além de nos vulnerabilizar a ataques de fanáticos.
Tem ainda o caso do pastor Retamero [pastor da Igreja da Comunidade Metropolitana – ICM, que é inclusiva], que aparece no vídeo também, o infeliz [Feliciano] fez vídeo só sobre ele. Para você ter ideia, ele sofreu agressão física na rua depois disso.
Na sorte, a gente seria espancado, e ninguém iria sujar as mãos de sangue, talvez uns fanáticos anônimos. Trabalharíamos em instituições que nos demitiriam. Felizmente a instituição em que trabalho é muito séria e o Cris também teve amplo apoio do sindicato de professores.

domingo, 16 de novembro de 2014

Homofóbicos: um desejo reprimido pelo mesmo sexo


Bandeira GLBT (Foto: Reprodução)http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2012/04/homofobia-pode-ser-reacao-de-desejo-retraido-pelo-mesmo-sexo-diz-estudo.html


Homofobia pode ser reação de desejo retraído pelo mesmo sexo, diz estudo

Segundo pesquisa internacional, aversão a homossexuais é mais frequente entre gays que não aceitam sua própria orientação sexual

REVISTA ÉPOCA
Estudo conduzido por universidades americanas e britânicas sugere que a homofobia é mais comum em indivíduos que possuem desejos retraídos pelo mesmo sexo. Tal preconceito cresce ainda por culpa de pais autoritários que reprimem tais desejos, diz a pesquisa publicada na edição de abril do periódico Journal of Personality and Social Psychology.
Os pesquisadores – que são das universidades de Rochester e da Califórnia, nos Estados Unidos, e da Universidade de Essex, na Inglaterra – realizaram quatro experimentos diferentes, cada um envolvendo uma média de 160 estudantes universitários alemães e americanos. A fim de analisar a atração sexual implícita e explícita dos participantes, os cientistas mediram as diferenças entre o que eles diziam sobre sua orientação sexual e como eles regiam em determinadas tarefas.

Já nos dois últimos testes, os cientistas aplicaram questionários que fizeram um diagnóstico do tipo de criação familiar dos participantes, além de suas orientações, crenças e opiniões políticas. Foi medido, por exemplo, o grau de homofobia existente dentro de casa, com indagações do tipo: “Seria assustador para minha mãe descobrir que esteve sozinha com uma mulher homossexual”.
Os dois primeiros experimentos tinham o intuito de avaliar a atração sexual implícita dos jovens. Para isso, eles tiveram que classificar algumas palavras e imagens exibidas em uma tela de computador como “gay” ou “heterossexual”. Foram também instigados a buscar livremente fotos de pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto.
Em todos os experimentos, jovens que cresceram em um ambiente familiar de repressão apresentaram grandes divergências entre o que declararam ser sua orientação sexual e o que foi observado pelos cientistas nos testes de atração sexual enrustida. Além disso, os indivíduos que se declararam heterossexuais, mas não demonstraram isso implicitamente, eram mais propensos a reagir com hostilidade a outros gays.
Segundo os cientistas, os homofóbicos são geralmente pessoas que estão em guerra com elas mesmas e acabam externando esses conflitos. Para os pesquisadores, os homossexuais que vivem em casas controladoras sentem medo de perder o amor e a aprovação dos pais caso admitam atração pelo mesmo sexo, por isso negam ou reprimem a si mesmos este desejo. Ou seja, de acordo com a pesquisa, a homofobia e a agressividade podem ser reação de quem se identifica com o grupo, mas não aceita o fato.


Outra fonte: 

Num experimento na universidade de Georgia nos EUA, especialistas comprovam que os que se dizem homofóbicos o são devido ao medo de assumir o desejo reprimido por alguém do mesmo sexo!

Acesse o vídeo para entender: 

https://www.youtube.com/watch?v=qVb8KtlMgmE

“A qualidade dos serviços de saúde mental está ligada ao respeito aos direitos humanos”, diz coordenador do MS

Reproduzo aqui um artigo importante sobre a saúde mental. Só há salvação se olharmos para o outro com os olhos do coração.

http://www.sul21.com.br/jornal/a-qualidade-dos-servicos-de-saude-mental-esta-ligada-ao-respeito-aos-direitos-humanos-diz-coordenador-do-ms/

9/nov/2014, 15h23min

“A qualidade dos serviços de saúde mental está ligada ao respeito aos direitos humanos”, diz coordenador do MS

 | Foto: Priscila da Silva/SES-RS
| Foto: Priscila da Silva/SES-RS
Débora Fogliatto*
Roberto Tykanori é um militante da reforma psiquiátrica desde os anos 1980, quando ainda era estudante de medicina. Após trabalhar em diversos hospitais em Santos e São Paulo, o psiquiatra foi convidado, no início do governo da presidente Dilma Rousseff (PT) a assumir a Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, cargo que ocupa até hoje.
O coordenador esteve em Porto Alegre durante esta semana para o lançamento de um projeto piloto de uma metodologia de avaliação dos serviços em saúde mental. Na ocasião, falou ao Sul21, juntamente com a Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, sobre o projeto, a reforma psiquiátrica e medidas para combater o uso de drogas. Ele destacou um programa criado nos Estados Unidos e já testado em São Paulo que fornece moradia e emprego para pessoas em situação de rua dependentes de crack e contou como isso quebrou alguns mitos em relação a esses usuários.
Tykanori afirma que o Ministério da Saúde opera dentro da lógica da reforma psiquiátrica e lamenta que a questão ainda seja polêmica, lembrando que internacionalmente a discussão já está “superada”. “Isso é um debate mundialmente superado, a OMS tem isso como superado, inúmeros acadêmicos se organizam em todos os países”, ponderou, afirmando que a internação em hospitais psiquiátricos recentemente foi considerada tortura pela ONU. Leia a entrevista na íntegra:

“A qualidade dos serviços de saúde mental está ligada à questão da promoção e respeito aos direitos humanos”

Sul21 – O senhor veio para Porto Alegre para ver a aplicabilidade dessa metodologia de avaliação do serviço de saúde mental. Como é este projeto?
Tikanory – Estamos trazendo para o país um método de avaliação de serviços de saúde mental que foi desenvolvido pela Organização Mundia de Saúde (OMS) e em inglês se chama Qualityright, um neologismo juntando as palavras “qualidade” e “direito” em uma palavra única. Isso denota a ideia de que a qualidade dos serviços de saúde mental está ligada à questão da promoção e respeito aos direitos humanos. Esse instrumento de avaliação foi elaborado em torno da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, da qual o Brasil é signatário e que foi incorporada na Constituição, através de um decreto que transforma ela em uma lei.
Nós ainda não criamos uma boa tradução para Qualityright, precisa ter uma viabilidade de ser compreendida pelas famílias, usuários e profissionais. Nós pretendemos fazer no país um processo de avaliação de serviços em que o protagonismo da avaliação seja dos usuários e seus familiares, associados com profissionais, categorias, representantes da sociedade civil, mas com protagonismo daqueles que têm interesse direto. Ao mesmo tempo, todo processo de avaliação supõe que os critérios sejam consensuados com quem é avaliado. Nossa ideia é que todos os gestores estejam cientes, possam acompanhar e estejam apropriados dos princípios que regem essa avaliação, porque intuito não é qualificar se é bom ou ruim, mas é que essa ferramenta promova um diálogo entre usuários, familiares e gestores de forma que possa ser sempre um processo de qualificação pactuada. Aquilo que se observa a partir do uso do instrumento possa ser apresentado para os gestores e eles pactuem planos de ação dentro do que é possível, em ciclos de atuação. O processo de qualificação não vai estancar, queremos que seja contínuo.
Oficinas de formação da ferramenta Quaityright contam com a participação de trabalhadores, gestores e usuários | Foto: Priscila da Silva/ SES
Oficinas de formação da ferramenta Quaityright contam com a participação de trabalhadores, gestores e usuários | Foto: Priscila da Silva/ SES
Sul21 – E por que começar esse projeto piloto pelo Rio Grande do Sul?
Tikanory – Viemos ao Rio Grande do Sul por várias razões. Entendemos que o estado tem historicamente uma tradição no entendimento das políticas de saúde mental. É um estado com alto nível de alfabetização historicamente, então a capacidade de domínio da linguagem do usuário e do gestor permite uma leitura crítica da semântica e do instrumento, inclusive para possibilitar alternativas linguísticas. Estamos focando aqui por colaboração dos companheiros do Rio Grande do Sul, que mobilizaram e convidaram cinco municípios. São profissionais da rede, associações de familiares e pacientes participando desse processo, além de parceria com quatro universidades do estado que terão papel fundamental na capacitação dos usuários e dos familiares.
Sul21 – A ideia é que se torne uma nova política pública, seja aplicado a todo país?
Tikanory – Estamos planejando que a partir do segundo semestre de 2015 se desencadeie o processo nacional. Não sei se poderemos fazer em todos os estados simultaneamente, mas certamente em algumas regiões do país. Para isso no primeiro semestre faremos o projeto piloto, como os que foram iniciados agora. E os gestores também terão a possibilidade de se auto-aplicarem, começa a se perceber a partir dos critérios que serão usados no futuro. Tem que ficar consensuado que esses itens são legítimos.

“Se começa a ter essa ideia de que as instituições totais – instituições de isolamento, fechadas em que pessoas estão submetidas a poderes muito assimétricos – são de alto risco de violação e tortura”

Sul21 – E isso tudo vai ser aplicado em redes de saúde mental, dentro da lógica da reforma psiquiátrica de extinguir os manicômios?
Tikanory – Sim, com certeza. O documento da Organização Mundial da Saúde (OMS) induz esse processo de reforma do mundo inteiro. Isso é algo concreto, reconhecido, de que serviços como hospitais psiquiátricos onde se tem concentração de pessoas, situações de não-transparência, pessoas ficam fechadas e isoladas são sempre de alto risco de violação de direitos. Agora a relatoria especial de Direitos Humanos da ONU passou a reconhecer isso como crime de tortura. Mundialmente se começa a ter essa ideia de que as instituições totais – instituições de isolamento, fechadas em que pessoas estão submetidas a poderes muito assimétricos – são de alto risco de violação e tortura.
Sul21 – A política de saúde mental que é feita no Rio Grande do Sul é um foco de tensão e resistência. Isso é uma situação do estado, ou se evidencia no resto do país? A gente sente isso, um embate diário.
 | Foto: Priscila da Silva/SES-RS
| Foto: Priscila da Silva/SES-RS
Tikanory – Olha, o processo de transformação da reforma psiquiátrica tem uma tensão histórica. Mas a lei de reforma foi aprovada no governo Fernando Henrique (PSDB), depois de doze anos de debate, quatro legislaturas do Congresso debateram essa lei. Então é um consenso da sociedade, as maiores forças da sociedade debateram e aprovaram. Isso não é pouco porque as pessoas confundem dizendo que a reforma foi feita pelo Partido dos Trabalhadores. Claro que historicamente o PT faz parte disso, mas grandes atores na história eram ligados ao PMDB, no Rio de Janeiro tem muita gente do PDT ligado a isso. A lei foi amalgamada por várias forças da sociedade, embora quem propôs tenha sido do PT. Então acho que as pessoas têm que ter um conhecimento do processo histórico da lei de reforma, que é uma lei realmente suprapartidária.

“Estamos falando de uma outra forma de lidar com os problemas sociais, ou seja, é uma reforma que muda como a sociedade lida com seus problemas”

Sul21 – Atualmente se vê muita oposição por parte de categorias médicas.
Tikanory – Sim, existe resistência maior no setor profissional médico. Dentro desse setor, quem mais resiste não necessariamente são os psiquiatras, mas quem era proprietário de hospitais psiquiátricos. Eles agora não ganham mais dinheiro quanto ganhavam antes, já foi a galinha dos ovos de ouro. E isso não tem a ver com epidemiologia, mas com o processo social. E existem demonstrações claras, Paul Singer nos anos 1970 tem um estudo de que o número de internações corre no inverso do crescimento econômico, temos demonstrações de curvas que se invertem o tempo todo. Particularmente na ditadura isso era muito eficaz, chegamos a ter mais de cem mil pessoas internadas. Estamos falando de uma outra forma de lidar com os problemas sociais, ou seja, é uma reforma que muda como a sociedade lida com seus problemas. Existe um desnível de entendimento, de compreensão sobre o processo da reforma e de interesses. Mas a categoria médica no geral não é necessariamente contra a reforma.
Talvez isso tenha também a ver com o nível de politização e polarização de todos os debates no estado. O que é ruim, porque se polariza certas coisas que não têm sentido. Isso é um debate mundialmente superado, a OMS tem isso como superado, inúmeros acadêmicos se organizam em todos os países.
Sul21 – Nos termos de clínicas particulares, também existe essa resistência? Como é o processo de reforma?
Tikanory – Aí se inverte, porque no campo privado as coisas são invertidas. As pessoas querem cada vez menos internar, porque se cria uma série de mecanismos para se ter acompanhante terapêutico, enfermeira em casa, isso é individualizado. A questão é que quando se trata de pessoas que “não são filho de alguém” digamos assim, despersonaliza a situação e se pensa como se fosse um método mais simples e lucrativo ficar nos hospitais.
 | Foto: Priscila da Silva/SES-RS
| Foto: Priscila da Silva/SES-RS
A reforma propõe um tipo de serviço em que se trabalha muito, o esforço é infinitamente maior e atende-se mais gente do que antes. Em 2002, o SUS fez em torno de 400 mil atendimentos registrados em saúde mental. A partir daí, acelera-se o processo da reforma e em 2010, o SUS realizou 20 milhões de atendimentos. Então em oito anos aumentou 50 vezes o número de atendimentos. A reforma permitiu atingir regiões que nunca tiveram acesso, saímos da orla do país para adentrar , com a interiorização da atenção psiquiátrica. Hoje literalmente temos CAPS do Oiapoque ao Chuí, mas não só. Tem CAPS no Acre, no interior do Amazonas, em locais isolados. Em Roraima eu estive há alguns anos, tinha um psiquiatra que estava de saída. Hoje, tem quase vinte. É surpreendente a oferta que passa a se criar com a reforma.
Sul21 – O senhor tem dados da criação de Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e expansão da rede nesse último período?
Tikanory – Atualmente, no Rio Grande do Sul tem 186 CAPS. Quatro anos atrás, eram 139, então são 47 a mais, ou seja, crescimento muito grande. Tem 12 CAPS que são 24 horas. Esses anos todos foi se aprendendo, testando os tamanhos, e percebemos que a potencia do CAPS não está no tamanho, mas na possibilidade de ofertar serviços. Os chamados CAPS 3 são grandes e funcionam 24 horas, mas precisamos também de CAPS pequenos que acolhem pessoas à noite. Essa ideia de que o serviço pode ser um local acolhedor, protetor, que promove ajuda real foi se desenvolvendo. Daqui para frente queremos estimular essa estrutura de ser capaz de acolher, independente do tamanho.
Nacionalmente, temos CAPS nas cidades de acima de 15 mil habitantes, já temos em 67% das mais de duas mil cidades. Mas o Brasil tem também muitas cidades abaixo de 15 mil, por isso é fundamental a noção de região de saúde. Para agregar do ponto de vista de população e de capacidade financeira, de gestão. Nesse sentido, o Estado terminou com os planos regionais e a gente deve estar levando adiante agora para institucionalizar, publicar os planos regionais do Rio Grande do Sul.

“Não tomamos medidas de força para recolher obesos, ou para recolher diabéticos, hipertensos que não se cuidam”

Sul21 – Em alguns casos de população em situação de rua,  se diz que o Estado não faz nenhuma busca ativa. Existem casos pontuais de populações que se considera que “causa problemas” e não se tem muita abordagem, ou a nível de segurança. O que a sociedade cobra é como o Estado chega nessas pessoas que têm problemas com drogas. Há preocupação com isso?
Tikanory – Essas situações se tornam, particularmente nas cidades grandes, mais evidentes com as pessoas que estão na rua. Isso era um problema para os gestores, como lidar com isso? Porque, de fato, criamos consultório de rua, que fazem busca ativa. Mas o que acontece é que as pessoas recusam atendimento. Então aí entra um dos debates, que algumas pessoas dizem “então pega a força”.
E entramos na questão de que porque pegamos a pessoa que está na rua e usa drogas e por que não pega a força o obeso que tem um ataque cardíaco, tem que ir para o hospital, não quer se tratar, que nos traz mais custos do que os usuários de crack, por exemplo. Não tomamos medidas de força para recolher essas pessoas, ou para recolher diabéticos, hipertensos que não se cuidam. E tem custos isso, se não se tratam vão ter um infarto, ocupar uma UTI, vão ficar sem trabalhar. Mas ninguém quer fazer uma internação compulsória para essas pessoas. Se o que justifica é um estado de doença, existem outros que são muito mais custosos, em quantidade muito maior e nós toleramos. Então não é exatamente esta a questão, porque mesmo que a gente usasse da força, dificilmente mudaria o comportamento.
 | Foto: Priscila da Silva/SES-RS
| Foto: Priscila da Silva/SES-RS
Sul21 – O que se pode fazer em termos de fornecer tratamento para essa população de rua, já se sabe que formas de abordagem são mais adequadas?
Tikanory – Há alguns anos, nos Estados Unidos, os gestores públicos se enfrentavam com problemas análogos e num certo momento radicalizaram. Perceberam que o que estavam fazendo não funcionava e entenderam que se o problema é que tem pessoas na rua, vamos tirar as pessoas da rua. Porque o que incomoda de verdade não é o estado de doença, é as pessoas estarem na rua. Então criaram programas que tem como objetivo tirar as pessoas da rua. Oferta-se uma casa, uma renda e faz-se um contrato de aluguel. E ele tem que sair da rua, se ele topar assina esse pacto e tem um quarto para morar. Isso começou a ser feito e as pessoas se perguntavam se iam cumprir a palavra. Num primeiro ano, mais de 98% mantém pagando regularmente, pagando aluguel. Em dois anos, 87%. Então os caras saem da rua. Os resultados disso: diminui a violência na rua, os chamados de ambulância, incidência de prontos-socorros. Isso não aumenta o consumo, começou a se observar que as pessoas tendem a aderir o tratamento. Na verdade aquelas pessoas que eram resistentes a um atendimento passaram a aceitar tratamento, após ter um lugar para morar.
Hoje tem estudos mais refinados em relação a esse tipo de abordagem no Canadá que começaram a mostrar indícios de que não só essa população de rua tem uma recuperação tanto quanto tratamento tradicional quanto tem efeito melhor. Essas publicações têm cinco, seis anos e o experimento há mais tempo. Essa ideia de que tendo um teto há um outro padrão de tratamento foi uma descoberta. Parece óbvio, mas não era óbvio. Havia uma certa ideia de meritocracia, de que a pessoa precisaria primeiro se recuperar do vício até ir subindo na escada e ser “merecedor” de uma casa, mas se descobriu que não é assim. Em inglês se chama “Housing First”, ou seja, primeiro a casa.

“Quem tinha medo de descer começa a circular nas calçadas. Depois de quatro meses, empresários aprenderam que era mais barato dar emprego do que contratar segurança”

Sul21 – Esse projeto pode ser aplicado no Brasil?
Tikanory – São Paulo fez isso na crackolândia lá, o prefeito Fernando Haddad fez isso, começando em janeiro. Tirou inicialmente 450 pessoas da rua, chamou elas, perguntou o que precisavam e fez o negócio de sair da rua, garantindo um teto, trabalho e possibilidade de educação. Foi o que eles queriam, e não voltaram para a rua, 85% permanece trabalhando regularmente. Uma boa parte parou de usar drogas e a maioria reduziu muito o consumo. Porque eles pensam que enquanto estão trabalhando, não tem tempo de consumir drogas, depois percebem que se diminuir o consumo conseguem comprar coisas que queriam. Isso dá uma perspectiva de participação do processo. As pessoas a grande maioria consegue se manter e faz o uso racional do dinheiro. Eles ganham R$ 15, o pagamento é semanal.
Beneficiários do programa De Braços Abertos, em São Paulo | Foto: Secom SP
Beneficiários do programa De Braços Abertos, em São Paulo | Foto: Secom SP
Eles dizem que fumavam 20 pedras e hoje fumam 4 ou 5. E com esse dinheiro, as pessoas pensavam que com R$ 15 eles não iam parar de fumar, mas não. O que realmente é o motor é que começam a entrar no circuito de reconhecimento. A prefeitura alugou cinco hotéis em situação irregular, regularizou, chamou os donos dos hotéis e pagou por isso, e alugou os apartamentos para esses usuários, que vão varrer os blocos em volta. O efeito disso é que o comércio local começa a circular, as ruas estão mais limpas, as pessoas têm menos medo. Quem tinha medo de descer começa a circular nas calçadas. Depois de quatro meses, empresários aprenderam que era mais barato dar emprego do que contratar segurança, e oferecem 40 vagas de trabalho para o prefeito. Hoje, deve ter umas 15 pessoas que saíram desse programa e já estão trabalhando de carteira assinada.
O programa se chama De Braços Abertos, que foi um nome que os próprios usuários deram. Cada indivíduo desses custa para a Prefeitura R$ 1100, R$ 450 é o salário e o resto é comida e hotel, por mês. A vantagem desse programa é que isso tira a pessoa da rua, esse dinheiro todo circula na economia local.
Sul21 – E como vocês veem a possibilidade de expandir essa experiência para outros locais do Brasil?
Tikanory – Temos discutido isso no Ministério, como expandir isso. Mas claro que é uma questão concreta de que só o Rio de Janeiro tem uma crackolândia parecida com a de São Paulo, com mais de cem pessoal. Em São Paulo, eram mais de mil pessoas e hoje chegou a um momento crítico, em que depois de dez meses há um novo grupo de pessoas que estão querendo a mesma coisa. E acho que o prefeito vai ter que lidar com isso, se está dando certo vai ter que ver como ampliar.
Ou seja, essas experiências começam a mostrar que existe um patamar mínimo de civilidade sobre o qual as pessoas necessitam para poder andar para frente. Abaixo daquilo, não vale a pena ser civilizado. Quando você cria essa base mínima, que é ter uma casa e uma renda, as pessoas começam a pensar sobre o futuro. Abaixo disso, o esforço é muito para ganhar muito pouco, então ficam à margem do processo de sociabilidade e sociedade. E a grande sacada disso é que custa pouco se a gente for pensar. Sendo bem hipotético, se a gente trancasse todas essas pessoas em uma cadeia ou hospital psiquiátrico, custaria muito mais. E não resolve, porque alguma hora elas voltam para a rua, e não se progrediu nada. O próprio município de São Paulo já criou mais quatro polos para expandir.

“O que é interessante é que se imaginava que uma pessoa viciada em crack não tem racionalidade, nem percepção dos seus problemas”

Sul21 – E ninguém ficou chamando de bolsa-crack, bolsa-drogado, essas coisas pejorativas?
 | Foto: Priscila da Silva/SES-RS
| Foto: Priscila da Silva/SES-RS
Tikanory – Ah, com certeza, nas primeiras semanas foi bem isso que se ouviu. Mas a questão é que quando as fantasias começaram a cair por terra, isso mudou. A primeira semana foi bem tensa porque eles iam receber R$ 115 na mão, as pessoas achavam que agora eles iam sair queimando muito crack. E daí veio a surpresa, quando perguntaram o que fariam com o dinheiro um homem disse que ia andar de táxi, que nunca tinha andado. Uma mulher disse “vou comprar um shampoo porque o que a prefeitura deu é uma porcaria”. E as coisas básicas, tipo comprar um chinelo para o filho, comprar uma sobremesa. Então é claro que vou pegar um pouco para queimar, mas o que é interessante é que se imaginava que uma pessoa viciada em crack não tem racionalidade, nem percepção dos seus problemas.
Então desfaz a ideia de que fumou crack não pensa mais nada, é um zumbi. Não só são racionais, como pensam inclusive na racionalidade do capital. Eles têm percepção das suas necessidades. Porque eles falam “quero casa, quero trabalho e quero estudo”, a quinta coisa que eles falam é queria tratamento de alguma coisa. Isso foi marcante em todos, a quebra de mitos, e a ideia de como as pessoas mudam de comportamento dependendo da sua inserção, mudam de atitude. Muita gente fala que são violentos, desrespeitosos, e assim por diante. Mas aí você muda o contexto eles passam a ser cordiais, passam a ser esforçados, andam de cabeça erguida. É a mesma pessoa, e não teve pílula mágica, uma química mágica, sem remédio. O remédio foi, de certa forma, como o Estado posicionou-se frente a essas pessoas.
Sul21 – Então é a ideia de que se o Estado mudar seu posicionamento frente a essas pessoas, daí sim elas próprias irão mudar, e não vice-versa.
Tikanory – Como o Estado se posicionou de forma que eles se tornassem sujeitos, eles passaram a ser sujeitos. Eu acho que esse é um grande aprendizado, e muda a orientação da política pública, não só pela questão da população de rua, mas pra pensar que todos necessitam de uma base de sociabilidade grande. Na questão da saúde mental, corroboram vários estudos contemporâneos, que dissolveram uma dúvida histórica. Quando eu era estudante havia uma dúvida: será que as condições sociais geram transtorno mental, ou será que o transtorno mental leva as pessoas a perder as condições sociais? Isso não se tinha dados. Hoje em dia tem se claramente que as condições sociais geram transtorno mental. Transtorno gera pobreza sim, mas o vetor maior, é ao contrário. E começa a haver estudos de tentar identificar afinal de contas o que na dita pobreza é tão incisivo.

“Por que que tem um monte de gente que está na rua e usa crack? A pergunta é por que essas pessoas não entraram no bonde do crescimento, mas continuam na rua?”

Sul21 – A coordenadoria existe há quanto tempo? Sempre esteve preocupada com as questões relacionadas ao consumo de drogas?
Tikanory – A política da questão das drogas aumentou muito no último período. Não só nessa gestão, mas na gestão anterior. No governo Lula, em 2004 já se tornou mais evidente. Por duas razões, uma parte é porque a reforma a partir de 2002 não tinha como foco a questão das drogas. Então o ritmo de crescimento de serviços voltados para pessoas com problemas de drogas e pessoas com transtornos mentais era diferente. Mas também o problema das drogas começou a se tornar mais evidente de uns tempos pra cá. Isso gerou uma distorção da percepção. Hoje se faz uma pesquisa nacionalmente, qualquer lugar que você vai, o pior problema que você tem de saúde, vai se dizer que é crack. Ou seja, as pessoas percebem e sentem isso como problema, embora não seja objetivamente mais significativo do ponto de vista factual. Uma parte acho que diz respeito à exposição midiática, mas a outra parte diz respeito a visibilidade que é o crack. A grande maioria das pessoas consomem crack na rua, em situações muito visíveis.
 | Foto: Priscila da Silva/SES-RS
| Foto: Priscila da Silva/SES-RS
Nem todo mundo que está na rua usa crack, mas tem uma ligação nessa percepção que vem do seguinte: porque que em um período onde economicamente nós tivemos um crescimento, onde a gente tem uma elevação de dezenas de milhões de pessoas que saem da pobreza, por que que tem um monte de gente que está na rua e usa crack? A pergunta é por que essas pessoas não entraram no bonde do crescimento, mas continuam na rua?

“Quem tinha as condições foi atingido pelas políticas, agora quem não tinha nenhuma, ficou mais de fora ainda”

Sul21 –Sim, essa é uma dúvida que fica. As pessoas subiram de vida no Brasil, mas muita gente ainda mora na rua. Qual a sua hipótese?
Eu comecei a fazer um entendimento do seguinte, é que os processos de promoção, as políticas de promoção social, tiveram efeito extremamente forte de crescimento, mas tem um processo também restritivo. As pessoas que têm menos condições não conseguem subir no bonde do crescimento. Os usuários de crack nas nossas cidades são os jovens e adultos, com baixíssima educação, com muito tempo na rua. Bom, o crack é um dos menores problemas que eles têm. Essas pessoas, com crack ou sem, têm baixíssima empregabilidade, estão há muito tempo fora do circulo institucional. Então essas pessoas tornaram-se visíveis, é um efeito paradoxal do crescimento. Quem tinha as condições foi atingido pelas políticas, agora quem não tinha nenhuma, ficou mais de fora ainda. Acho que isso tem um efeito macro social que é a ideia de que aqueles que ascendem querem romper laços com os que ficam pra trás.
Então por isso que essa estratégia do Housing First começa a fazer sentido. Porque são pessoas que se você exigir muito elas não entram. Acho que a questão fundamental é essa, nós estamos tendo que lidar com as dores do crescimento. Isso significa reajustar determinadas percepções sobre os problemas da sociedade hoje. O crack já existia há mais de vinte e tantos anos, então não é uma novidade. A novidade é que gente pobre está usando na rua.

*Colaborou Sinara Sandri